Os Vetões e o seu contexto histórico
Os Vetões foram um povo celta que habitaram a região centro-oeste da Península Ibérica (na atual Espanha: região das cidades de Ávila, Salamanca e Zamora; e em Portugal, nas cidades de Guarda e Castelo Branco). Eles eram conhecidos por sua economia pastoril, em que predominavam uma forte produção de gado bovino e equino e vida rural. Uma de suas características mais conhecidas foi a resistência à romanização, em que mantinham suas tradições guerreiras e religiosas mesmo após a conquista romana.
Os Vetões tiveram muita relação com os povos vizinhos, entre eles, os Lusitanos, com os quais fizeram alianças ocasionais contra Roma, porém mantendo rivalidades por pastagens. Fontes romanas, como Apiano, descrevem coalizões na Guerra Lusitana entre 155-139 AEC; os Celtíberos, em que laços linguísticos e culturais eram comuns e o comércio de armas e cavalos era bastante ativo. Cerâmicas similares nas regiões de Numância e Yecla de Yeltes mostram um compartilhamento de teônimos como Lugus; os Galaicos, tinham um contato via rota de minério, estanho, e mostra uma influência mútua em desenvolvimento de jóias e armas. Os torques e braceletes “galaico-vetão” encontrados nos sítios arqueológicos de Los Cogotas na região da cidade de Ávila pode ser uma fonte de comprovação; os Váceos mantinham fronteiras tensionadas por conta de incursões em busca de gado, conforme menção em textos de Estrabão (III, 4, 3) que trata de conflitos na região do Rio Douro.
Interessante notar que os Vetões eram vizinhos dos Lusitanos a oeste, mas compartilhavam mais afinidades culturais com os Celtiberos do leste. A relação com os Galaicos ao norte era mais distante, mas unidos pelo substrato céltico comum.
Antes de ir para a batalha, os guerreiros Vetões invocariam Vaélico, pintando-se com as cinzas da fogueiras rituais realizadas nos bosques para ganhar a força lupina. Preferiam guerra de guerrilha, se utilizando da tática da emboscada, usando caminhos dentro de florestas e desfiladeiros para ataques relâmpagos, muitas vezes noturnos e de recuos rápidos.
Os métodos documentados são as Correrias, que consistiam em incursões para saque de suprimentos romanos; Terra Queimada, que seria a destruição de suas próprias posses, como aldeias e plantações, para impedir o avanço inimigo, descrito por Apiano em Iberiké 57, e; Uso do Cavalo, em que sua cavalaria ligeira atacava e recuava em diversos pontos de atrito, sendo famosa por sua mobilidade, atestada por Políbio em XI, 1, 7.
Os Vetões estiveram em conflitos contra os romanos em duas ocasiões: a Coalizão com Viriato (147-139 AEC), onde apoiaram com táticas de guerrilha ao lider lusitano, usando a Montanha de Gredos como refúgio; e nas Guerras Cantábricas (29-19 AEC), onde nos últimos focos de resistência do norte, os Vetões se uniram aos galaicos e aos astures para resistir ao domínio romano.
Seu armamento favorito consistia na Falcata (uma espada curva), no soliferreum (um dardo de ferro maciço e nos seus escudos redondos de madeira.

Em seu território, eram comuns as esculturas de verracos (imagens de pedra representando javalis, touros e possivelmente lobos), associadas a cultos animais e proteção daquele território.
Embora os verracos mais famosos sejam touros ou javalis (ex.: Toros de Guisando), a região de Ávila e Cáceres tem esculturas menos estudadas. Se houver representações de lobos em Candeleda ou Madrigal de la Vera, considerando a presença de lobos em sua cultura sendo plausível, dada a importância desse predador na pastorícia, seriam indícios concretos do culto a Vaélico. Possível Verraco-Lobo: Uma estátua de granito com traços lupinos, se encontrada, seria a “assinatura” arqueológica do santuário. Locais como Yecla de Yeltes (Espanha) têm verracos próximos a rios e florestas, sugerindo cultos ligados à natureza e proteção.
A associação de Vaélico com o lobo faz sentido no contexto indo-europeu, onde o lobo simboliza a proteção e guerra (Em culturas célticas, lobos eram ligados a divindades guerreiras (ex.: o irlandês Cú Chulainn, cujo nome tem relação com cães/lobos)); a transição e liminaridade (o lobo, como animal de matilha, poderia representar laços comunitários ou ritos de passagem); Postoloboso sugerindo um santuário ou local de culto, possivelmente marcado por um verraco lobuno ou uma paisagem simbólica.
Após a romanização forçada de seu território, santuários foram abandonados. E inscrições pós-romanas (séc. II D.EC.) na região de Ávila mencionam Lares Vetonicienses (lares locais), indicando persistência de identidade vetã.
Vaélico, o Deus-Lobo guerreiro das florestas

Considerado um “Deus das Batalhas do Limiar”, Vaélico representava a guerra não apenas como conquista de território, mas era principalmente um rito de transformação onde o combate era um caminho do guerreiro de elite.
O Deus-Lobo protegia os espaços selvagens contra os invasores de seus territórios. Os domínios se estenderia sobre clareiras, cruzamentos de caminhos e grutas, locais onde o véu entre os mundos seria mais fino.
Nas culturas célticas, as florestas em meio às brumas, eram vistas como portais para o Outro Mundo, chamado de Annwn para os galeses e de Tír na nÓg para os irlandeses. Os lobos de Vaélico seriam guerreiros falecidos que, em vez de seguirem para o Outro Mundo, escolheram servir ao deus como guardiões do Limiar, como Protetores das Fronteiras, em que eles atacavam os invasores que profanassem as florestas sagradas e também como os Guardiões das Almas, acompanhando os mortos em sua jornada para o Outro Mundo, garantindo que não se perdessem no caminho.
Um equívoco sempre aparente, embora “Vaélico” não conste em fontes clássicas (como Estrabão ou Plínio), é plausível que tenha sido um teônimo local, onde os nomes de divindades variavam regionalmente. Exemplo: Endovélico, deus lusitano da cura e do submundo, cultuado no Alentejo.
Após a conquista romana, sincretizam-se os deuses locais com suas divindades. Um “deus-lobo” como Vaélico poderia ser ligado a Marte (Deus da guerra), Silvano (Deus das florestas e rebanhos) ou Orcus (Entidade do Submundo, pela associação com a morte).
Localização de Postoloboso
Localizado na divisa de Ávila, Cáceres e Toledo, fica a montanha de Gredos. Considerada uma montanha sagrada, poderia ser vista como morada do Deus ou anteparo para o Outro Mundo. O desfiladeiro Alardos, que desce de suas encostas, serviria como “caminho” simbólico para Vaélico.
O bosque de Postoloboso portanto, localizado nessa região seria um santuário neutro, usado por diferentes comunidades vetãs para cerimônias coletivas. A equidistância de Candeleda e Madrigal de la Vera reforçaria essa função de espaço compartilhado.
Sendo os bosques espaços de culto para povos célticos, o bosque de Postoloboso possivelmente abrigaria clareiras sagradas onde se realizavam ritos. Diferente de templos romanizados, é possível que o culto a Vaélico ocorresse ao ar livre, com marcos naturais (rochas, árvores) ou efêmeros (pilhas de pedras, fogueiras). Paralelos existem em santuários celtas como a Fonte do Ídolo (Braga, Portugal). A presença de lobos na região (hoje extintos, mas abundantes na Antiguidade) reforçaria a conexão com o Deus-Lobo.
Parte do maciço de Gredos, o Rio Tiétar e Desfiladeiro Alardos criam uma junção de um rio (símbolo de vida e transição) com um desfiladeiro (porta para o desconhecido), um espaço liminar, ideal para rituais de passagem. A proximidade do Tiétar garantiria água para libações, enquanto a caça nas florestas de Gredos sustentaria rituais de oferenda.
Rituais no limiar: Guerra, Morte e Renascimento
Ritual das Armas Quebradas: Guerreiros depositariam espadas ou lanças partidas em santuários florestais, simbolizando o fim de um ciclo de violência e a entrega à proteção de Vaélico.
Ritos de Solstício de Inverno: Período associado ao afinamento do véu entre mundos. Fogueiras seriam acesas em clareiras para honrar Vaélico, invocando sua proteção contra espíritos malignos.
Ritos de Lunações Cheias: Rituais de guerra e caça seriam realizados sob a lua cheia, considerada o “olho de Vaélico”.
Ritualísticas de passagem, por exemplo, iniciação de guerreiros, como os Fianna – guerreiros de Fionn mac Cumhaill – ou de funerais, que ocorreriam nesses espaços sob sua vigilância.
Iniciação Guerreira

Em cerimônias de iniciação, jovens guerreiros passariam uma noite no bosque de Postoloboso, enfrentando medos e entrando em transe para “encontrar” a matilha de Vaélico. Sobreviver seria sinal de aceitação e faria dele, um ser da elite guerreira do Deus. Suas armaduras de couro fervido, seus escudos, espadas ou lanças poderiam ser mergulhadas nas águas do Rio Tiétar para serem abençoadas pela divindade, num rito semelhante ao do deus irlandês Nuada e sua espada luminosa.
Funerais e Passagem para o Outro Mundo
Guerreiros mortos em batalha teriam seus corpos (ou cinzas) levados a Postoloboso, onde o bando de lobos “guiaria” suas almas. A planície, como espaço aberto, facilitaria cerimônias públicas de despedida. Megálitos ou marcos de pedra (hoje possivelmente destruídos ou não identificados) poderiam marcar a fronteira entre o mundo físico e o espiritual.
Finalizo dizendo que a partir da pesquisa deste texto, pude entender melhor Vaélico como senhor do Limiar, personificando a violência ordenadora da natureza – caos dos lobos e disciplina dos guerreiros, equilibrando os mundos visível e invisível. A ausência de registros diretos não invalida a hipótese de sua existência ou não; pelo contrário, convida a uma investigação interdisciplinar que una arqueologia, etnografia e mito-história para o seu aprofundamento.
Neto Artokalos
Coordenador dos Guardiões da Tribo
Guerreiro da Ordem Druídica Ramo de Carvalho
REFERÊNCIAS
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