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Ilustração de /mythology

A Deusa Macha

Macha é uma deusa irlandesa da fertilidade, da soberania e da guerra. É parte do trio de deusas irmãs da guerra e da soberania conhecido como Na Mórrígna (As Morrigans). Para saber quem são as três irmãs, podemos recorrer ao Lebor Gabala Érenn (O Livro das Invasões da Irlanda), onde é dito: 



“Badb is Macha mét indbais, 

Mórrígan fotla felbáis, 

Indlema ind aga enrbais, Ingena ana Ernmais” (Lebor Gabala Érenn)

 

“Badb e Macha de rica provisão, 

Mórrígan que dispensa confusão, 

Cúmplices da morte pela espada, 

Nobres filhas de Ernmas” 

(tradução livre)

 

Portanto, podemos nomear como Na Mórrígna as três filhas de Ernmas e Delbáeth: Badb, Macha e Mórrígan, geralmente fundidas na imagem da própria deusa Mórrígan pelo contraste com a nomenclatura coletiva “Mórrígna”, e pelos erros históricos dos tradutores, coletores e mitólogos que escreveram sobre essas deusas.

É fato de que este não foi um trio muito querido pelos intérpretes e tradutores dos mitos irlandeses nos últimos milênios, especialmente por se tratar de deusas femininas, guerreiras, empoderadas que regiam a soberania, a carnificina, a feitiçaria e a fertilidade.

Lamia – monstrum in femine figura .i. morigain” 

(Stokes; Strachan, 1901 – provavelmente escrito em 876 ou 877dEC)

“Lamia – monstro em forma feminina, isto é, uma Mórrígan” (tradução livre)

A esta altura, nos é caro lembrar que Mórrígna é plural de Mórrígan que deriva da junção de Mór (Grande) ou Mor (Fantasma) Rígan (Rainha)

É possível dizer, portanto, que As Mórrígans foram deidades demonizadas e hostilizadas, para não dizer perseguidas pela colonização cristã da Irlanda, se tornando associada a monstros femininos de outras mitologias, como a grega, por exemplo. Passaram a representar aspectos femininos temíveis e recrimináveis pela cultura cristã patriarcal. Esse fator é crucial para entendermos a fusão que essas três deusas receberam e o porquê hoje é tão difícil encontrar bons materiais que diferenciem uma da outra de forma clara e objetiva. Não é possível ter clareza de que essa fusão é igualmente encontrada entre os antigos, ou se eles as viam como três deusas completamente diferentes ou se como faces de uma mesma deidade tríplice.

Para entendermos Macha, vou propor começarmos por nomear seus pais, a quem sabemos ainda menos sobre. Ernmas seria uma Tuatha dé Danann, uma antiga “deusa mãe” da Irlanda, chamada de “fazendeira” no Lebor Gabala Érenn. Já Delbáeth, há três possibilidades para ele: (1) um fomoriano, pai de Elatha e avô de Brés e Dagda; (2) um jovem nobre Tuatha dé Danann filho de Óengus mac Óg; (3) um humano, líder de Munster, sétimo da linhagem de Ailill Aulomm. A terceira opção, certamente não nos serve nesse momento. Há ainda associações entre Delbáeth (ao menos um dos dois primeiros) com Tuirill Biccreo ou Tuireann, deus do trovão. Não podemos ter certeza se estamos falando de pessoas diferentes ou da mesma entidade, em relação a Delbáeth e Tuireann. Já os dois primeiros, me parecem ser pessoas diferentes com o mesmo nome, isso porque o primeiro é avô de Dagda, e o segundo seu neto. Já no caso do terceiro, ele também pode ser encontrada com a referência de “Lugaid mac Tail”. Se considerarmos que em muitas mitologias europeias há uma relação/casamento/cópula entre um deus celestial e uma deusa terrena como “casais primordiais”, acho justo pensarmos que o tal Delbáeth associado a Tuirenn, deus do trovão, seja o consorte de Ernmas, e, portanto, pai das Mórrígna.

Ou seja, as Mórrígna podem ser totalmente Tuatha dé Danann (de mãe e pai) ou serem igualmente Tuatha dé e fomorianas (mãe e pai, respectivamente). Falando de Macha…

No Glossário de O’Mulconry, podemos ver: “Macha, i.e. uma gralha, ou uma das três mórrígna. Mesrad Machae, o mastro de Macha, i.e. as cabeças dos homens que foram massacrados” (tradução livre). Ou ainda:

Macha .i. badhb, no feannóg . mol macha .i. cruinniughadh badhb, no feannóg” (Miller, 1879-83: 19) 

“Macha, i.e. Badb, ou uma gralha cinzenta. O monte de Macha, isso é a coleção de Badbs, ou de gralhas cinzentas” (tradução livre) 

Mas o que a mitologia diz? Não há na mitologia irlandesa mitos exclusivos para cada deidade, então precisamos conhecer e nos aprofundar em suas aparições nos mitos e sagas cronificadas. Enquanto deusa e uma das Mórrígna, Macha aparece nas Batalhas de Maige Turied, mas com poucas descrições sobre ela, sua ação acontece em conjunto com as de suas irmãs, quando conjuram névoas e fazem chover fogo e sangue sobre os inimigos por atos de feitiçaria, favorecendo as Tuatha dé Danann na guerra. Na segunda batalha, há, contudo, uma menção à morte de Macha junto de Nuada, pelas mãos de Balor.

Nos mitos, no entanto, Macha aparecerá mais quatro vezes, separadamente e há questionamentos se estamos falando de 5 Macha diferentes, ou de uma mesma Macha que se manifesta/encarna em diferentes momentos. Religiosamente, essas entidades costumam se fundir em uma retórica única, com principal referência a última delas. Vou me ater a explicar as outras quatro, considerando já ter falado da deidade Macha, uma das Mórrígna, irmã de Mórrígan e Badb, filha de Ernmas.

Macha, filha de Partholón. Em um poema no Lebor Gabala Érenn, é referenciado uma Macha, filha do líder do primeiro assentamento na Irlanda após o dilúvio, mas nada mais é registrado sobre ela.

Macha, esposa de Nemed. Esposa do líder do segundo assentamento na Irlanda, a primeira do povo nemediano a morrer, tendo sido enterrada no alto de uma colina que recebeu o nome de Ard Mhacha (lugar alto de Macha), e a floresta a seu redor teria sido desmatada e batizada de Magh Mhacha (Planície de Macha). Na região de onde estaria essa colina, hoje existe a cidade de Armagh, capital do condado homônimo na Irlanda.

Macha Mong Ruad (Macha dos Cabelos Ruivos). Filha de Áed Rúad (“Fogo Vermelho” ou “Senhor Vermelho”, pode ser um dos epítetos atribuídos a Dagda). Seu pai dividia o reinado com seus primos, Díthorba e Cimbáeth, e cada um governava por um ciclo de 7 anos. Após a morte de seu pai, Macha requisitou para si a soberania durante o ciclo de seu pai, mas precisou vencer Díthorba (e depois seus filhos) em batalha pela legitimidade de ser uma mulher governante. Após sua vitória, Macha casou-se com Cimbáeth, com quem compartilhou seu reinado. Segundo os mitos, Macha perseguiu sozinha os filhos de Díthorba, disfarçada de uma mulher leprosa, e teria derrotado um a um quando eles tentaram se deitar com ela. Ela, então, os levou a Ulster onde os teria escravizado para a construção do Emain Macha (Forte de Macha). Macha teria morrido 21 anos depois, 14 após a morte de Cimbáeth, tendo reinado por três ciclos. Há de se registrar que Macha é a única rainha registrada na “Lista dos Alto Reis da Irlanda”.

Macha, esposa Cruinniuc. Esta talvez seja a mais famosa das histórias com Macha. Filha Sainrith mac Imbaith, foi esposa do fazendeiro Cruinniuc. Após a morte da primeira esposa de Cruinniuc, Macha teria aparecido em sua casa e, sem falar nada, começou a agir como sua esposa. Durante sua estadia houve prosperidade, fertilidade e riqueza na vida de Cruinniuc. Após algum tempo ela teria ficado grávida dele. Nos momentos finais da gravidez houve um festival no reino ao qual seu esposo foi participar. Contudo Macha o havia advertido: ela só permaneceria com ele, se ele não contasse a ninguém sobre ela. Contudo, durante as corridas de biga, em um momento de empolgação, Cruinniuc comentou que sua esposa era capaz de correr mais rapidamente que os cavalos do rei. Se sentido desafiado, o rei ordenou que aquela mulher fosse levada a sua presença e depois a obrigou a correr contra seus cavalos. Mesmo grávida e suplicando por sua condição, Macha não foi ouvida. Ao final, vitoriosa, na linha de chegada, Macha teria também parido gêmeos, um menino chamado Fír (“Verdadeiro”) e uma menina chamada Fial (“Modesta”). Por ter sido desrespeitada, antes de desaparecer, Macha teria amaldiçoado os homens de Ulster. Estes, no momento de maior necessidade, seriam tão fracos quanto uma mulher em trabalho de parto. A maldição os assolaria por 5 dias durante 9 gerações. O local onde Macha deu à luz, passaria, então a ser conhecido como Emain Macha (os Gêmeos de Macha). Essa figura de Macha é geralmente comparada a deusa galesa Rhiannon.

Em menção, me cabe dizer que os cavalos da carruagem de CúChulainn seriam Liath Macha (O Cinzento de Macha), e Dub Sainglend (O Preto de Saingliu), dois cavalos gêmeos que teriam nascido no mesmo dia de CúChulainn. Fazendo novamente associação não só a Macha, mas a história da esposa de Cruinniuc.

Algumas correntes, como dito, tendem a interpretar que são 5 Macha diferentes. Contudo, há quem estabeleça um paralelo entre elas. Na cultura religiosa contemporânea, é possível dizer que essas imagens tenham se fundido de modo a (re)construir a imagem da deusa, filha de Ernmas, uma das Mórrígna, que se perdeu nas brumas do tempo. Particularmente, preciso concordar numa coerência interpretativa dessa fusão se considerarmos que em todas as manifestações registradas Macha se apresenta como uma mulher soberana, insubmissa, insubordinável, empoderada, combativa, guerreira e altamente ligada à terra, à fertilidade. 

Seria provável dizer que Macha é uma deusa da terra e da soberania, principalmente considerando a relação feminina e equina que a soberania assume no contexto mitológico irlandês. Ela representa a soberania concedida, a terra que concede seus frutos e agracia os valorosos. Enquanto suas irmãs estariam associadas a soberania conquistada (Badb), e a soberania merecida (Mórrígan). 

Como deusa terrena, Macha assume o papel da soberania e da maternidade outrora associados à sua mãe, Ernmas, e o dom sobre a vida e a morte. Seguindo uma interpretação mito-ontológica proposta por Mircea Eliade, Macha, como deusa terrena, é também a “deusa assassinada” ou “sacrificada”, no sentido de herdar o arquétipo da morte ou do autossacrifício como concepção de vida, fertilidade e sustento terreno. É a terra que é ceifada na colheita. Essa ótica explicaria suas mortes e “(re)encarnações” em diferentes (porém similares) figuras nos mitos irlandeses, aparecendo em diferentes momentos, para reconfigurar o pacto de soberania (ou usufruto) da terra local pelos homens. 

O lado guerreira associado a ela, como uma das Mórrígna, igualmente corrobora com sua realeza enquanto deusa da soberania, seja pela concepção do termo/título “mórrígan” como “grande rainha” (independentemente deste ser o nome de uma deidade), e a relaciona com o aspecto igualmente militar da soberania, concebendo a presença e o domínio humano sobre um espaço físico como também uma tarefa militar e se consolidando como aquela que é livre, insubmissa e insubordinada. 

O Mastro de Macha (Mesrad Macha), creio surgir exatamente nesse contexto: como uma demonstração de soberania e de poder sobre os inimigos, entregando suas cabeças em estacas à deusa Macha, à terra. Marcando, assim, a soberania e a conquista de um terreno. Cabe lembrar que numa anatomia celta-irlandesa, a essência de uma pessoa (portanto a sua soberania) reside em sua cabeça. São esses cadáveres que vão também alimentar as gralhas e corvos que se juntam após a batalha, marcando a soberania e explicando as citações que relacionam Macha como um bando de gralhas, ou melhor dizendo, um coletivo de Badb (entendida aqui como [a deusa do] frenesi).

Mesmo quando associada a um esposo (que poderia representar o governo do homem sobre a terra), Macha permanece em sua soberania, sendo ela doadora desse dom/poder, como a terra doa (ou confisca) seu usufruto aos homens. Tal associação se repetiria alguns mitos mais tarde na figura da rainha Medb, e curiosamente, se relaciona quase sempre aos campos de Ulster, na Irlanda.

 

“Há lugares acidentados lá longe

Onde os homens cortam o mastro de Macha;

Onde conduzem bezerros para o redil;

Onde as mulheres-corvos instigam a batalha.”

(Dub Ruis, Dublin, Trinity College, MS 1337)

Associações de Macha:

  • Animais: Gralha cinzenta, corvo, bando/congregação de gralhas ou corvos; equinos;
  • Atributos: Terra, agricultura, pastoreio, soberania, guerra, maternidade, filhos gêmeos, vida e morte, feminilidade, empoderamento feminino;
  • Locais: campos, montes e pradarias. Ard Mhacha; Armagh; Emain Macha; Ulster (todos na Irlanda);
  • Parte do corpo: cabeça;
  • Mitos em que aparece: Cath Maige Tuired; Compert Con Culainn; Dindshenchas; Inna hinada hi filet cind erred Ulad; Leabhar Buidhe Leacáin; Lebor Gabala Érenn; Mesca Ulad; Noínden Ulad; Táin Bó Cúailnge; Tochmarc Emire.

 

Por Ávillys mac Mórrigan

(Dartagnan Abdias)

@dartagnan.abdiass

Leanaí an Ghealach Clann

Fidnemed na Síd

 

REFERÊNCIAS:

 

ANCIENT Texts [S. I.]. Lebor Gabala Érenn. Dispnível em: http://www.ancienttexts.org/library/celtic/ctexts/leborgabala.html 

ANCIENT Texts [S. I.]. The Wooing Of Emer. Disponível em:  http://www.ancienttexts.org/library/celtic/ctexts/emer.html 

CODECS. MS 1337, Dublin: Trinity College. Disponível em: https://www.vanhamel.nl/codecs/Dublin,_Trinity_College,_MS_1337 

CODECS. O’Mulconry’s Glossary. Dublin: Trinity College. Disponível em: https://codecs.vanhamel.nl/O%27Mulconry%27s_glossary 

EPSTEIN, Angelique G. War Goddess: The Morrígan and her Germano-Celtic Counterparts. Dessertação (2013). In Scribd. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/186317947/War-Goddess 

MILLER, Arthur W. K. (ed.). O’Clery’s Irish Glossary. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/23037154 

MYTICAL Ireland [S. I.]. Cath Maige Tuired – The Second Battle of Moytura. Disponível em: https://mythicalireland.com/blogs/myths-legends/cath-maige-tuired-the-second-battle-of-moytura 

O’BRIEN, Lora. The Daughters of Ernmas. In Lora O’Brien [S. I.]. Disponível em: https://loraobrien.ie/daughters-of-ernmas/ 

O’BRIEN, Lora. The Morrigan in Irish Mythology. In Lora O’Brien [S. I.]. Disponível em: https://loraobrien.ie/morrigan-irish-mythology/ 

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STOKES, Whitley; STRACHAN, John (eds.). Thesaurus palaeohibernicus: a collection of Old-Irish glosses, scholia, prose, and verse. 3 vols. Cambridge: Cambridge University Press, 1901–1910. Disponível em: https://codecs.vanhamel.nl/Stokes_and_Strachan_1901-1910 

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