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Definindo o Paganismo

É fundamental ressaltar desde o começo que até o século XX as pessoas não se autodenominavam pagãs para descrever a religião que praticavam. A noção de paganismo, como é geralmente entendida hoje, foi criada pela Igreja Cristã primitiva. Era um rótulo que os cristãos aplicavam aos outros, uma das antíteses centrais do processo de autodefinição cristã. Como tal, ao longo da história, foi geralmente usado em sentido depreciativo. Portanto, até o capítulo final, esta Breve Introdução examinará amplamente o paganismo através dos olhos do mundo cristão e como, ao longo dos séculos, noções e representações de sua natureza foram moldadas por conflitos religiosos, lutas pelo poder, colonialismo e pelo mundo acadêmico. Em suma, esta é uma introdução à ideia de paganismo ao longo dos últimos dois milênios.

As pessoas que foram rotuladas como pagãs no passado seguiam uma gama extremamente diversificada de crenças e rituais religiosos. Com exceção dos autores da Roma e da Grécia antigas, porém, nosso conhecimento de como eles eram baseia-se em grande parte no clero cristão. O que sabemos da religião dos vikings antes de sua conversão ao cristianismo, ou das tribos da América do Sul colonial e da África, por exemplo, foi moldado pelos preconceitos e objetivos daqueles que tentaram impor uma nova religião sobre eles. Muitas das fontes foram escritas retrospectivamente, décadas e séculos depois que as culturas pagãs foram cristianizadas. Há também muitas lacunas no registro literário, e nossa compreensão das religiões em algumas regiões do passado pré-cristão depende exclusivamente da tentativa de identificar e interpretar a atividade ritual através das escavações arqueológicas. Em suma, entender a história do paganismo é reconhecer a natureza fragmentária, distorcida e parcial das fontes.

PRIMEIRAS ORIGENS

Considerando o que acabou de ser dito, não é surpreendente que a origem da palavra tenha atraído considerável debate acadêmico. A definição mais antiga de “paganus”, a palavra latina da qual deriva pagão, dizia respeito a “rústico”, “do campo”. A partir do século V EC, os autores cristãos começaram a reformulá-la em termos abertamente religiosos, descrevendo os pagãos como adoradores de ídolos rurais. Muito mais tarde, ‘pagão’ foi muitas vezes traduzido como ‘camponês’ na língua inglesa. As conotações religiosas evidentes desapareceram, mas o sentido depreciativo em relação a um morador rural ignorante e atrasado continuou. Esses usos deram aos cristãos uma vantagem retórica, reforçando a equação simples de que os “pagani” eram camponeses que se apegaram por mais tempo a práticas idólatras não cristãs, em contraste com as populações urbanas cristianizadas do Império Romano. Um problema inicial com essa definição é que a resistência organizada ao cristianismo era realmente mais forte nas cidades.

Estudos mais recentes reavaliaram o uso inicial do termo “paganus” em relação ao cristianismo e descobriram definições mais sutis do que então significava. Nos séculos II e III EC, um significado comum de “paganus”, como substantivo e adjetivo, era “civil” no sentido de “não militar”. Isso possivelmente derivou do fato de que os primeiros cristãos se referiam a si mesmos como “soldados alistados” da Igreja Cristã e, portanto, os não-cristãos eram descritos como pagãos – aqueles que eram civis e não soldados de Cristo. Essa definição parece ter se tornado redundante no século IV, e não fornece uma ligação satisfatória com o desenvolvimento posterior de ‘pagão’ como explicitamente não-cristão.

Outra definição, proposta pelo estudioso francês Pierre Chuvin, reconstrói “pagani” como significando “pessoas do lugar, cidade ou país, que preservaram seus costumes locais”. Portanto, nesse sentido, os “pagani” não eram idólatras rurais atrasados. Eram pessoas definidas pelas religiões de suas comunidades locais, estivessem elas nas cidades ou no campo. Eles eram a antítese dos “alieni”, ou “pessoas de outros lugares”, em outras palavras, cristãos. Foi apontado, no entanto, que a etimologia da palavra não corresponde necessariamente ao seu significado em determinados momentos, e que seu uso em documentos literários não reflete necessariamente seu uso na linguagem popular.

Havia outros termos usados como sinônimos de “pagão” na literatura da Igreja primitiva. No mundo cultural de influência grega do Mediterrâneo oriental, as palavras “ethne” e “ethnikoi” descreviam essa categoria de alteridade e estranheza. No início do século IV, elas foram substituídos pelo termo helenos, que se referia àqueles instruídos na cultura e nas ideias gregas e, por inferência, na adoração das divindades gregas. ‘Bárbaro’ era outra palavra de origem grega que viria a ser usada amplamente. Originalmente significava alguém que não falava grego, ou que era estrangeiro em outras palavras, mas depois adquiriu conotações de inferioridade cultural, senão militar. Quando se tratou de espalhar a palavra da Bíblia entre as tribos germânicas durante o século IV, o missionário bispo Ulfilas traduziu os helenos (do latim “gentilis”) para o gótico como “háithnô”, ou “pagão”. Isso talvez denotasse, como “pagão”, uma pessoa que vivia em lugares selvagens e remotos (as charnecas) e se apegava a velhos costumes, mas também poderia derivar da palavra armênia “hetanos” para “nação” ou “tribo”.

O latim “gentilis”, ou “gentio”, também pode ser encontrado nos primeiros textos cristãos e medievais. Embora hoje seja usado quase exclusivamente para significar um não-judeu, no passado “gentio” era usado em um contexto cristão para denotar aqueles que não eram batizados. Assim, em seu “Etymologiae”, um resumo enciclopédico de todo o conhecimento existente na época, Isidoro de Sevilha (c. 560-636 EC) explicou que os gentios eram aqueles que “ainda estavam no estado em que foram gerados, ou seja, como vieram descidos à carne em pecado, servindo a ídolos e ainda não regenerados”. A partir do século VI, “gentio” tornou-se mais problemático do que “pagão” devido à crescente influência das tribos germânicas no oeste e no sul da Europa à medida que o Império Romano desmoronava. “Gentilis” também foi usado no sentido de um “bárbaro” não romano, mas como nessa época muitos povos germânicos também haviam se convertido ao cristianismo, um não romano não era mais um não cristão por definição. Consequentemente, “pagão”, uma palavra provavelmente de maior uso popular, foi cada vez mais usada para esclarecer a identidade de um não-cristão não-romano.

A definição de “gentio” de Isidoro nos leva à questão de como os cristãos percebiam os pagãos em relação a outras religiões concorrentes no mundo cristão romano. Embora “gentio” pudesse ser usado de forma abrangente para se referir a todas as pessoas não batizadas, os teólogos geralmente distinguiam entre pagãos, judeus, hereges e, a partir do século VII, muçulmanos. No entanto, os limites às vezes eram deliberadamente borrados na busca da Igreja pela supremacia religiosa. Podemos ver isso acontecendo na Espanha do século VII. Um cânone da Igreja, provavelmente datado de cerca de 624, alegou que os pais judeus que tinham sido obrigados a batizar seus filhos estavam fugindo da ordem ao contratar filhos de vizinhos cristãos e apresentá-los para o batismo como se fossem seus. Dessa forma, as crianças judias permaneciam judias e as crianças cristãs eram batizadas duas vezes. O aspecto pertinente do cânone denunciava os judeus por manterem assim “sua própria descendência como pagãs por pretensão sinistra e nefasta”.

Tendo em mente que durante o reinado do rei visigodo Sisebuto (612-621 EC) houve uma virulenta campanha real para erradicar o judaísmo da Espanha por meio de conversão forçada e exílio, a referência a pagãos nesse documento eclesiástico pode ser interpretada como parte de um estratégia política deliberada da Igreja para minar a legalidade do judaísmo, rebaixando-o ao status ilegal de paganismo. Nos séculos 15 e 16, enquanto a monarquia cristã e a Igreja tentavam expurgar a influência mourisca da Espanha, um alargamento semelhante de definições viria a incluir os muçulmanos.

USO POSTERIOR

O próximo grande passo na ampliação do uso político do paganismo ocorreu durante outro traumático conflito religioso europeu – desta vez entre cristãos. Durante a Reforma Protestante do século XVI, o paganismo foi cogitado como um termo geral para “falsas religiões”, e para muitos teólogos protestantes não havia nada mais falso do que o catolicismo, com seus ícones, adoração de santos e compartilhamento da carne e sangue de Cristo. Roma, outrora uma rocha do cristianismo em um mar de outras religiões “idólatras”, era agora denunciada como sede da iniquidade pagã.

Em seu sermão de 1624 sobre paganismo e papismo paralelos, o clérigo da Igreja da Inglaterra, Thomas Ailesbury, comparou a Roma papal à Roma pagã, descrevendo-os como “reunidos em uma massa ou caos”. Ele também fez uma analogia com Jezebel, a antiga rainha bíblica que levou os hebreus à idolatria. Se o Vaticano “fosse despojado daquelas túnicas do paganismo”, disse Ailesbury, “ela quase ficaria nu”. Para esses teólogos protestantes, o culto católico não era melhor do que as práticas dos antigos pagãos, que se caracterizavam pelo sacrifício e pela imoralidade sexual. Um ex-jesuíta, Thomas Abernethie, espumava de ódio pela “vida brutal e sodomita” do Vaticano, que era ainda “pior que a dos pagãos”. O ministro genebrino do século XVII, Pierre Mussard, escreveu um panfleto tentando provar que a missa católica foi derivada diretamente de ritos de sacrifício pagãos.

Embora nos próximos capítulos nos afastemos da definição de paganismo para examinar a natureza das religiões rotuladas como “pagãs” pelos escritores cristãos, devemos sempre ter em mente que o termo é problemático e uma consciência do contexto em que estava sendo aplicado é importante. Se o “paganismo” é tão carregado de valores, tão carregado de preconceitos, por que continuar a usá-lo? Alguns tentaram evitá-lo e, em vez disso, usaram o “politeísmo”. Porém, como veremos no próximo capítulo, isso também levanta problemas interpretativos. Termos como “religiões indígenas pré-cristãs” poderiam ser usados, mas aquelas religiões e sistemas de crenças rotulados como pagãos no passado não eram necessariamente de origem pré-cristã e nem necessariamente indígenas.

A evitação tão pedante do “paganismo” pode ser igualmente enganosa na interpretação do passado. Talvez Frank Trombley, um dos principais especialistas em religião do mundo antigo, tenha a atitude certa: “Não descobri nenhuma boa razão para evitar o uso da palavra”. “Se alguns estudiosos estão preocupados em ferir os sentimentos de gerações passadas”, continuou, “não consigo discernir nenhuma necessidade científica ou empírica para tal escrúpulo”. Outro estudioso, um especialista em religião romana, sugere que “podemos chamá-lo assim como qualquer outra coisa”. Com essa observação, passemos a explorar o que constituía o paganismo no mundo antigo.

 

Davies, Owen. Paganism; a very short introduction. New York: Oxford University Press Inc., 2011, pp. 18-22.
Tradução: Bellou̯esus