Morríghan, a Grande Rainha

Falemos sobre Morrígan, uma das divindades mais intrigantes e enigmáticas do panteão celta. Ela é uma antiga deusa irlandesa associada à guerra, às batalhas, à profecia, à soberania e ao poder sobrenatural — forças que não apenas movem exércitos, mas também moldam destinos.

Seu culto floresceu especialmente durante a Idade do Ferro na Irlanda, mas a primeira menção escrita conhecida data de cerca de 750 D.C. Acredita-se, no entanto, que esse registro seja apenas uma transcrição tardia de mitos orais muito mais antigos.

O nome “Morrígan” pode ser traduzido do irlandês antigo como “Grande Rainha” — mor (grande) e rígan (rainha) — embora algumas fontes também tragam a etimologia “Rainha Fantasma”, revelando uma faceta mais sombria e espiritual da deusa.

Morrígan é uma divindade de muitas faces — literalmente. 

Deusa Morrigan por Simbelmyne-9 no Deviant Art

Na mitologia irlandesa, ela é uma mestra da metamorfose, transmutando-se com naturalidade em corvo, loba, vaca, enguia, cavalo, além de se manifestar em formas humanas — ora jovem sedutora, ora anciã de olhar penetrante.

Sua presença é ao mesmo tempo terrena e etérea, situando-se entre o sangue das batalhas e o sussurro das profecias.

Mas compreender Morrígan exige ir além de seus títulos e formas. É necessário adentrar sua multiplicidade.

Ela é muitas em uma só — um arquétipo tríplice, sim, mas que não se encaixa no modelo moderno da Donzela, Mãe e Anciã tão comum na Wicca. 

Em vez disso, sua tríade é formada por manifestações distintas, com aspectos diferentes que juntas compõem a Morrígna, o coletivo das Filhas de Ernmas.

Entre essas manifestações, podemos citar:

Badb (pronuncia-se bai-ve): é a deusa da batalha. Seu nome se traduz diretamente como “Corvo de Batalha”. Ela é o corvo-escaldante, a lavadora de roupas no vau e, em muitos relatos, a própria personificação da morte. 

Badb não está apenas associada à violência e ao combate em si, mas também à estratégia, à profecia e à arte da guerra. Seus gritos ecoam nos campos de batalha, influenciando o resultado das lutas e alimentando-se dos mortos após o conflito.

Macha (pronuncia-se ma-ha): é reconhecida como a deusa da terra e da soberania. 

Na literatura, é evocada para proteger a terra e seu povo, e punir aqueles que rompem pactos sagrados com o Outro Mundo. Macha possui forte ligação com cavalos — símbolo de prestígio e riqueza na sociedade celta — e com a própria identidade da terra, sendo vista como sua personificação viva. 

Por isso, embora associada à fertilidade, ela não é uma deusa da fertilidade comum: ela é a própria terra.

Némain (pronuncia-se ney-van): é outra deusa da guerra associada à Morrígan, cujo nome traz significados como “fúria”, “terror” e até “poder virulento”. 

Em textos antigos, ela é retratada como esposa do deus da guerra Néit. Némain é ligada ao frenesi e ao caos da batalha, sendo famosa por seus gritos que provocavam pânico nos exércitos inimigos — a ponto de muitos soldados caírem mortos de medo, sem sequer entrar em combate.

Além dessas três figuras centrais, há também Catubodua (“Corvo de Batalha”), uma deusa gaulesa mencionada em uma única inscrição na Alta Saboia, no leste da França. 

Ela é muitas vezes associada a Badb, e alguns estudiosos a conectam com outras deusas guerreiras como Boudina, Bodua e Boudiga — todas compartilhando raízes etimológicas ligadas à luta ou à vitória.

O conhecimento com Morrígan nunca vem de forma fácil. Ela não entrega saberes de bandeja nem suaviza os caminhos do aprendizado. 

Como bem demonstra o episódio do herói Cúchulainn, quando, a caminho da grande batalha provocada pela Rainha Maeve, encontra Morrígan e não a reconhece. 

Recusa, inclusive, seu convite à “amizade das coxas” — uma união simbólica e mágica que muitos estudiosos interpretam como um pacto de soberania através do ato sexual. 

Ora, é catastrófico um herói não reconhecer sua Senhora, especialmente quando ela é quem domina os destinos de guerra.

Em resposta, Morrígan se transforma em vários animais e obstáculos, atrapalhando Cúchulainn durante sua jornada. 

Mas estaria ela realmente o prejudicando… ou testando-o para torná-lo um guerreiro mais digno de seu próprio destino?

 A pergunta permanece, e como em muitos mitos celtas, não há resposta única — apenas camadas a serem desveladas com maturidade e estudo.

Outro aspecto interessante de ser abordado sobre Morrighan, é sua possivel relação com Morgana, irmã do Rei Arthur.

Alguns estudiosos sugerem que as lendas arturianas — especialmente a figura de Morgana — podem ter sido influenciadas pela mitologia celta, com a Morrígan servindo de arquétipo para essas personagens.

Em todo caso, é inegável: tanto Morrígan quanto Morgana representam forças femininas poderosas, complexas, ligadas ao destino, à morte e à natureza primordial.

Como vimos, Morrígan é, sem sombra de dúvida, uma das divindades mais cultuadas do panteão celta — tanto por druidistas, como eu, quanto por praticantes da espiritualidade celta em geral, além daqueles que buscam força, poder ou se alinham à ideia de uma “Deusa Negra”, do “Submundo”, proclamando-se seus filhos e filhas.

Contudo, tais conceitos, como vimos, não refletem com precisão a essência da Deusa — são compreensões que surgem muitas vezes de uma visão superficial ou romantizada de seus mistérios.

Falo com propriedade, pois fui, no passado, um daqueles que a invocaram de forma leviana, desejando torná-la mãe espiritual sem ter clareza do que isso realmente implicava — sem compreender o peso e a profundidade de estar a seu serviço.

Ainda assim, quando ela atende, sua presença é como um colo quente e reconfortante — mas também firme, exigente, implacável. Ela nos salva de nós mesmos, ao nos confrontar com a nossa sombra. Ensina que nossos medos e receios não são fraquezas, mas fontes legítimas de poder. E revela que essa visão está disponível a todos — embora nem todos estejam prontos ou dispostos a acessá-la.

A Grande Rainha — epíteto que prefiro usar ao me referir a Ela — não é uma deusa de cultos esporádicos, de apaziguamentos com velas e incensos ocasionais. Não.

Hoje, após mais de duas décadas em seu culto e sacerdócio, posso afirmar com convicção: invocar Morrígan como Mãe é se colocar a serviço dela. E isso significa entrega, constância, verdade.

O culto à Morrígan exige constância — e não, não falo apenas de práticas diante do altar.

Ser filha ou filho dela requer uma vigilância profunda sobre suas atitudes, suas escolhas, seu cotidiano. É uma Deusa que exige prática viva, encarnada. Devoção que se expressa através de quem você é.

Ela exige coragem — e isso não significa ausência de medo, mas a força de seguir adiante apesar dele.

Exige que não nos acomodemos. Que enfrentemos as injustiças do mundo e que não nos omitamos. Requer, acima de tudo, posicionamento.

Não se trata de fazer tudo — mas de fazer o que se pode, com verdade. É escolher lados. É lutar pelo que é justo.

É continuar mesmo quando se quer desistir. É confiar quando tudo pede por recuo. É seguir com fé tendo como único abrigo o som de suas asas sobre nós.

É ter honra — e saber, antes de tudo, honrar a si. Porque a honra é um presente que se dá a si mesma. E é essa integridade que a torna digna aos olhos da Rainha.

Quantas vezes transgredimos nossos próprios valores para agradar ou agradar outros? Quantas vezes nos deixamos em situações humilhantes, aceitando migalhas de afeto em lugar de amor verdadeiro?

Será que o medo da solidão ou da rejeição está nublando quem realmente somos?

Estas são algumas das muitas perguntas que emergem do culto à Morrígan. O caminho com Ela exige consciência — e, mais que isso, a coragem de romper padrões que nos aprisionam.

Sim, coragem leva tempo para se desenvolver. Mas, se você trabalha por isso, então já é digno do olhar atento dessa Mãe.

Por outro lado, permanecer na inconsciência é manter-se acorrentado — preso a si e às situações que oprimem.

Morrígan é a voz que ecoa nos campos de batalha. É a sombra que guia os soberanos. É o corvo que observa do alto. É a terra que sustenta tudo.

Ela oferece o conhecimento de si e sobre si. E o verdadeiro conhecimento, quando aceito, liberta — e concede poder.

E é esse poder que, bem trabalhado, nos conduz à liberdade tão almejada.

Texto: Juju Couto Aiduã

Bibliografia

https://druidry.org/resources/morrigan

Livro da Mitologia celta – Claudio Quintino.

Enciclopédia da Sabedoria Celta, de Caitlin e John Matthews

The Morrigan: Celtic Goddess of Magick and Might – Cortney Weber

Morrigham – Morgan Daimler

As crônicas de Inis Fál vol  1 e 2 – Leoni Moura.

Merlin o Mago – Jean Markale