Imagine um deus ligado à terra, às colheitas e a rituais que hoje nos parecem impensáveis de realizar? Essa é a história de Crom Cruach, uma deidade envolta em controvérsias dentro da mitologia irlandesa.
Crom Cruach (também chamado de Crom Cróich ou Crom Dubh) é um dos deuses mais enigmáticos da Irlanda pré-cristã. Seu nome pode significar algo como “Monte Curvo” ou “O Encurvado do Sangue”, dependendo da tradução. As referências mais antigas vêm de textos medievais, como o Lebor Gabála Érenn (Livro das Invasões) e o Dindsenchas (coleção de lendas sobre lugares sagrados).
Ele era associado à fertilidade da terra, mas não de um jeito “paz e amor”. Na Irlanda antiga, colheitas abundantes eram questão de vida ou morte, e ele exigia sacrifícios em troca. Os antigos celtas o viam como um deus necessário, porém temido. Era adorado como um ídolo de ouro ou pedra, cercado por doze estátuas menores, em um lugar chamado Magh Slécht, no condado de Cavan, Irlanda.

Quando chegava o Samhain, as comunidades reuniam-se em Magh Slécht para fazer oferendas sacrificiais de sangue, cujo objetivo era garantir colheitas abundantes no próximo ano e que o inverno não fosse rigoroso. Esses sacrifícios incluíam animais, como bois e ovelhas, mas, em casos de maior necessidade, também sacrifícios humanos — especialmente crianças primogênitas. O Livro de Leinster descreve que os devotos prostravam-se até a testa sangrar, em um gesto de submissão total. Não era um deus para se admirar, mas para se aplacar.
Com a chegada do cristianismo à Irlanda, no século V, muita coisa mudou. Reza a lenda que São Patrício confrontou diretamente Crom Cruach, destruiu o ídolo de pedra em Magh Slécht e converteu o local em um espaço cristão. Essa narrativa é claramente uma propaganda religiosa — a Igreja sempre retratou os deuses pagãos como demoníacos.
Mas Crom Cruach desapareceu? Alguns estudiosos acreditam que elementos de seu culto fundiram-se com figuras folclóricas posteriores, criando Crom Dubh (“O Negro Encurvado”), associado a festivais de colheita no fim do verão. Até hoje, em partes da Irlanda, o festival de Lughnasadh carrega resquícios desse passado obscuro.
No século XXI, a devoção não é exatamente popular — afinal, sacrifícios humanos são considerados crimes. Porém, ele sobrevive de outras formas, como no Neopaganismo e Reconstrucionismo Celta. Alguns grupos pagãos modernos resgatam essa deidade como símbolo da força bruta da natureza, substituindo antigos sacrifícios por oferendas simbólicas de carne fresca, cerveja preta, pães e grãos.
Na cultura pop, Crom Cruach tornou-se personagem em jogos, livros e séries. No RPG Dungeons & Dragons, por exemplo, ele é um deus maligno que exige sangue. Na literatura, autores como Morgan Llywelyn mencionam-no em romances históricos, reforçando sua aura de mistério.

Crom Cruach é um deus que desafia a simplificação. Para os antigos, era uma força a ser temida e aplacada; para nós, tornou-se símbolo de um passado pagão que mistura medo e fascínio. Sua história lembra que, por trás de mitos ditos assustadores, muitas vezes havia contextos de sobrevivência para uma sociedade agrária desesperada para não passar fome.
Uma coisa é certa: ele nunca foi totalmente esquecido. Permanece como um eco da Irlanda ancestral, sussurrando que a história é sempre mais complexa e sombria do que parece.
Crom Cruach aparece em textos medievais irlandeses como uma divindade ambígua — nem totalmente benevolente, nem apenas maligna. As principais citações sobre ele estão no trecho “A Lenda do Rei Tigernmas”, contido no Lebor Gabála Érenn. O rei Tigernmas, um dos primeiros Altos Reis da Irlanda, teria instituído o sacrifício anual de primogênitos e animais no Samhain em Magh Slécht. Nesse local, a lenda diz que, durante um ritual, Tigernmas e três quartos de seu exército morreram de joelhos diante do ídolo, deixando a Irlanda sem rei por sete anos até Eochaid Étgudach assumir o trono.
Outra citação do deus ocorre no conto “O Sacrifício das Crianças”, presente no Dindsenchas. O texto relata que famílias ofereciam seus primeiros filhos a Crom Cruach em troca de fertilidade para a terra. A imagem é chocante hoje, mas reflete a mentalidade de que a vida humana estava intrinsecamente ligada à sobrevivência da comunidade.
A geografia irlandesa preserva vestígios do culto ao deus. Magh Slécht (“Planície da Adoração”), localizada no condado de Cavan, é considerada o epicentro mitológico de sua devoção. Hoje, uma pedra marca o suposto local do ídolo, conhecida como Crom Cruach’s Stone, com lendas sobre marcas de sangue (na verdade, líquens vermelhos).
Cruachán (Croghan Hill), um morro no condado de Offaly, associado a ritos pagãos, deriva de cruach (“pilha” ou “monte”). Loughcrew (Sliabh na Caillí), complexo de tumbas megalíticas no condado de Meath, apesar de ter claras ligações com Cailleach, preserva conexões indiretas com Crom Cruach. antigos.
Enquanto Cailleach está ligada ao inverno e à transformação da terra (esculpindo montanhas com seu martelo), Crom Cruach vincula-se à fertilidade imediata — colheitas, chuva e ciclos agrícolas. Ambos são considerados deuses ctônicos (do grego khthon, “terra”), ligados ao submundo e aos segredos do solo. Crom Cruach recebia sacrifícios enterrados ou derramados na terra, enquanto a Cailleach “dorme” sob montanhas no verão, ressurgindo no inverno. Em festivais como Lughnasadh, ritos invocam ambas as divindades, mesclando tradições.
Estudos sugerem que o termo “Cruach” em nomes de lugares pode indicar sítios de culto.
Neto Artokalos
Coordenador dos Guardiões da Tribo
Guerreiro da Ordem Druídica Ramo de Carvalho
REFERÊNCIAS
CARROLL, M. The Cult of the Virgin Mary: Psychological Origins. Princeton: Princeton University Press, 1986.
DAVIDSON, H. E. Crom Cruach: Celtic God of Sacrifice. Folklore Journal, v. 73, n. 2, p. 45-60, 1962.
HUTTON, R. The Pagan Gods of Pre-Christian Ireland. London: Thames & Hudson, 1991.
MAC NEILL, M. The Festival of Lughnasa. Dublin: Comhairle Bhéaloideas Éireann, 1982.
O’CRUALAOICH, G. The Book of the Cailleach. Cork: Cork University Press, 2003.
SJOESTEDT, M. Gods and Heroes of the Celts. London: Methuen & Co., 1949.
Lebor Gabála Érenn (Livro das Invasões da Irlanda). Tradução de John Carey. Dublin: Irish Texts Society, 1993.
Dindsenchas (Lendas de Lugares). Tradução de Edward Gwynn. 4 vols. Dublin: Dublin Institute for Advanced Studies, 1991.
